
Não sou de inventar histórias.
Conto o acontecido, e só isso.
Ouvi de velho conhecido, e achei bom dar ciência, não guardar segredo.
Sou apenas um contador de histórias, aprendiz ainda.
Contar história é coisa de muita ciência, aprendida pelos sertões, e eu ainda careço de sertões.
Conto o que ouvi, e dou fé.
O juiz não acreditava:
- É isso mesmo deputado?
Era.
Verdade verdadeira.
O deputado tinha um amigo enfronhado nos lençóis de bela dama, e estamos falando dos anos 50 na Cidade da Bahia. Um porém: bela dama casada.
E o amigo confidenciava, contava o deputado, e pedia desculpas, vênia ao meritíssimo, sempre necessário respeitar autoridade de juiz, pedia escusas por dizer isso, revelar a confidência, necessária talvez para o supremo entendimento do que viria a seguir: a bela dama era um vulcão.
O juiz mexeu-se na cadeira, incomodado.
Tenso, teso, sabe-se lá mais o quê.
Ensaiou perplexidade:
- Um vulcão?
-Sim, meritíssimo. A cama com ela irrompia em chamas. Meu amigo esquecia-se de tudo. Foi uma primeira vez, pensou seria aquela apenas, e tudo foi se seguindo sem parar, aqueles encontros escondidos, o vulcão em irrupção, não via lençóis, era o corpo dela lindo lindo fogo fogo puro fogo vermelho vermelhou aquele mundo lindo mundo ele afundado ali sem saber como sair e sem querer sair – e o juiz interferiu:
- Está muito interessante, excelência, mas o deputado parece estar fugindo um pouco do assunto, não?
- Está bem, meritíssimo, tentou emendar-se – com juiz não se discute.
Tinha mais, isso tinha, o amigo havia lhe dado detalhes, confessa ter ficado, como diria, tinha ficado emocionado, envolvido. Ate houve o acontecido, uma noite, e como narrador tenho de contar, narrador não deve guardar segredo: chegou a sonhar com o incêndio, aquela mulher surgiu em sua cama sua própria cama tudo em chamas gritou de prazer e com seu gozo, desculpem, acordou a santa esposa, e ela o acalmava o que foi benzinho, calma, está tudo bem, é apenas um pesadelo, santa mulher.
Mas, o meritíssimo, incomodado, e não querendo se interessar, e com a consciência de que juiz há de ter siso, não pode deixar arrastar por turbilhões por tentações a lhe turvar a mente ou arrastá-lo a pensamentos demoníacos – veio-lhe a mente o magnífico romance de Thomas Mann, doutor Fausto, e fantástica história do pacto com o Diabo – não, com ele não, afasta de mim esse cálice, valha-me o Senhor Jesus Cristo, e quase benzeu-se, quase se persignou.
O deputado seguiu.
- Sucede, meritíssimo, um imprevisto. O marido, homem de letras, honrado, reconhecido na sociedade, dado a envolver-se com o estudo dos sertões, e dotado de valores familiares muito sólidos, soube. Para sua tristeza e indignação, descobriu: sua casta esposa se refastelava em outra cama. Casta, até ali, o meritíssimo entenda-me.
O juiz, agora, verdadeiramente incomodado, doido pra saber aonde o deputado queria chegar:
- Sim, excelência. Somos amigos e tudo, mas de que modo posso ajudá-lo neste caso?
- Ah, caro amigo, permita-me chamá-lo assim, há uma tragédia a caminho.
- Como? – pergunta o juiz, assustado.
- O marido, ofendido em sua honra, contratou um pistoleiro para matar o meu amigo.
Soube, e narrador sabe é de coisas.
Em casa, sujeito de uma coragem da porra, disse à mulher:
- Corno, sim, disse à mulher em prantos, mas corno manso, não. Esse sujeito vai morrer.
Arrastava-se aos pés do marido, prometia que nunca mais, jurava pela Virgem Maria fora uma única vez, umazinha só, inocente, um descuido, a perdoasse, só sua, de mais ninguém, juro por Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, pela Virgem Maria, e chorava, chorava.
- Uma vez? Que seja. Chifre é chifre, e ninguém tira. Só o sangue, a morte. Só isso lava a honra, garante o respeito.
O juiz, assuntando, e assustado:
- Sim, deputado, mas e eu com isso, com todo o respeito?
- Acontece, meritíssimo, que o pistoleiro é seu conhecido.
O juiz aí assustou-se de vez:
- Não estou entendendo, meu caro deputado – reagiu.
- O senhor um dia, juiz consciencioso, numa das mortes dele, o rapaz não é iniciante, lá em cidade do interior por onde passou, amaciou na sentença, e ele nunca mais o esqueceu, reconhecido para sempre.
- Lembro disso, não – meritíssimo saltou de banda, tentou desviar-se.
O deputado refrescou-lhe a memória, e ele aquiesceu.
- Mas, e daí? Vossa excelência quer o quê de mim?
- Que chame o pistoleiro aqui e o convença a não matar o meu amigo.
Intermináveis segundos de silêncio na sala.
O juiz pegou o copo d’água, tomou um gole, outro, pensou. Não queria frustrar o deputado, amizade antiga, e juiz precisa de deputado, não é?:
- O seu amigo então já localizou o pistoleiro?
- Já. E sabe: é morte anunciada.
- Vossa Excelência pode trazê-lo aqui?
- Pra ontem – disse o parlamentar.
O juiz exigiu: vou conversar com ele, mas vossa excelência vai ficar aqui na sala ao lado sem ninguém saber e vai ouvir toda a conversa.
Virou-se, esforçou-se, o deputado e deu-se tudo como o combinado.
Uma tarde, o pistoleiro apresentou-se com sua melhor roupa: camisa cinza gasta pelo tempo manga curta manga comprida não tinha calça cáqui botina também gasta pelo tempo o chapéu a rodar nas mãos nervosas secretária mandar entrar fica em pé boa tarde senhor juiz pode sentar com licença fique à vontade como vai o senhor quer um cafezinho um copo d’água não senhor carece nada não estou bem.
O juiz não fez muitos arrodeios:
- O senhor sabe: juiz sabe é de coisa. O senhor veio à capital matar um cidadão, e eu sei quem é. O cidadão é amigo de um amigo meu, e vou querer que não faça esse trabalho.
- Meritíssimo, o senhor me perdoe. Sou agradecido ao senhor até o fim de meus dias, juro por Deus que está no céu. Mas, esse pedido não posso atender, sinto lhe dizer isso. Fui contratado, e serviço combinado não tem jeito de voltar atrás. É palavra dada, e sou homem de palavra. Se não cumpre trato, homem não merece viver. Melhor morrer.
Uma enrascada, pensou o juiz, à sua frente um homem de valores sólidos, mas carecia insistir, quase suplicar:
- Preciso desse favor seu.
- Tem jeito não doutor. Vou ficar lhe devendo. Sinto, juro, por essa luz que me alumia.
E o pistoleiro botou acréscimo:
- Além de tudo, já recebi pelo trabalho. Como não vou cumprir? Será servicinho rápido, e já está pago. Entendeu, doutor? É minha honra em jogo. Vagabundo é que recebe e não faz o serviço combinado.
O juiz pensou rápido:
- Então, vamos fazer o seguinte: me diga quanto foi pago pelo seu trabalho. Eu lhe dou o valor, você devolve o dinheiro ao contratante, e some no mundo.
Silêncio, aqueles intermináveis segundos, o pistoleiro girando o chapéu de abas largas nas mãos nervosas, assuntando, até que falou:
- Vou aceitar doutor, pelo muito que lhe devo. Com isso, saio daqui mais leve, e vou tocar minha vida por esse interior afora que trabalho graças a Deus não me tem faltado.
Meritíssimo deu-lhe o dinheiro, ele contou nota a nota, e seguiu viagem.
O amigo do deputado não morreu.
E acabou levando o vulcão com ele lá pras terras do Sul.
Um vulcão assim não se deixa pra trás.
Mesmo com risco da própria vida.
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